Aplicação do Algoritmo de Redes Neurais Artificiais - CBDB 2022

Guilherme Henrique da Silva Pinto – Engenheiro Geotécnico – Pimenta de Ávila

Hugo Assis Brandão – Coordenador do Comitê Técnico e Núcleo de Inovação – Pimenta de Ávila

Tatiana Barreto Santos – Professora Adjunta – Universidade Federal de Ouro Preto

RESUMO

A determinação da resistência não drenada de rejeitos é essencial na engenharia geotécnica, tendo em vista que tal parâmetro é utilizado para avaliar as condições de estabilidade de estruturas de contenção de rejeitos. Muitas metodologias, empíricas e/ou analíticas, foram desenvolvidas para a estimativa deste parâmetro baseado em correlações para solos naturais utilizando o ensaio de piezocone (CPTu). Entretanto, tais metodologias podem apresentar valores inconsistentes se aplicado a materiais manufaturados como rejeitos. No presente trabalho, o autores aplicaram o algoritmo de Redes Neurais Artificiais (RNAs) para determinar a resistência não drenada de pico de um rejeito de bauxita baseado em dados de CPTu. Os resultados mostraram a aplicabilidade do método RNAs sendo obtido resultados mais acurados e menos dispersos do que a metodologia via Nkt.

ABSTRACT

Definition of tailings undrained shear strength is essential in geotechnical engineering since this parameter is used to evaluate the stability conditions of tailings storage facilities. Several analytical and/or empirical methods have been developed to estimate this parameter based on correlations defined for soils using the piezocone teste (CPTu). However, these methodologies could lead to inconsistent results if directly applied to manufactured materials such as tailings. In this paper, the authors used Artificial Neural Network (ANN) to determine the undrained shear strength of a bauxite tailing based on CPTu data. The results have shown the applicability of the ANN method to obtaining more accurate and less dispersive results than the conventional methodology based on Nkt.

1 – INTRODUÇÃO

A correta determinação de parâmetros como resistência e rigidez dos rejeitos é de suma importância na engenharia geotécnica, visto que ele impacta diretamente na avaliação da condição de estabilidade de estruturas de contenção. Casos recentes de ruptura de barragens de rejeito, como Kolóntar (Hungria) em 2010 [1], Mount Polley (Canadá) em 2014 [2] e Brumadinho (Brasil) em 2019 [3], mostram a necessidade do melhor entendimento de tais parâmetros. Além disso, o Padrão Global da Indústria para Gestão de Rejeitos destaca em seu princípio II a importância da caracterização dos rejeitos na gestão da segurança das estruturas de contenção, em todas as fases de vida do empreendimento, desde a operação até o fechamento [4]. 

Para a caracterização geotécnica de rejeitos e determinação de parâmetros de resistência e deformabilidade, comumente são realizados ensaios de campo e ensaios de laboratório [5]. No que diz respeito aos ensaios de campo, dentre as formas comerciais largamente empregadas na geotecnia de mineração para a avaliação da resistência não drenada, destacam-se o ensaio de cone/piezocone (CPT/CPTu) e o ensaio de palheta (Field Vane Shear Test – VST) [6].

Normatizado pela norma americana ASTM D5778 [7], o ensaio CPTu tem princípio de realização simples. O ensaio consiste na cravação de uma ponteira cônica (com 60º no ápice), com velocidade padronizada de 2,0±0,5cm/s, sendo registradas leituras a cada 2cm ou 5cm em média. Comumente, a seção transversal do cone mede 10cm², seguido por uma luva de atrito lateral de área transversal de 150cm² e um sensor de medição de poropressão localizado atrás do cone (posição u2). O ensaio CPTu fornece três medidas independentes: (i) a resistência de ponta (qc), que representa a resistência do solo à cravação do cone; (ii) o atrito lateral (fs), que representa a aderência do solo à luva de atrito durante a cravação; e (iii) a poropressão gerada durante a cravação (u) que é usualmente medida atrás do cone (u2), conforme as boas práticas internacionais [6, 8].

A determinação da resistência não drenada (Su) com base em ensaios CPTu, pode ser realizada com base numa equação que correlacionam as variáveis medidas durante a execução do ensaio e o fator de capacidade de carga Nkt, como apresentado na Equação 1 [9], onde qt é a resistência total do cone, obtida pela Equação 2, e σv0 a tensão vertical total.

equacao 1 e 2

Para a determinação do Nkt, muitos pesquisadores propuseram formulações empíricas e/ou analíticas, calibradas para as condições de cada material estudado. Entretanto, conforme apresentado por Herza et al. [10], a depender das variações do peso específico do material (utilizado no cálculo da tensão vertical total) e no Nkt, o Fator de Segurança (F.S.) de uma estrutura pode variar entre -60% a +120%, conforme apresentado na Figura 1 [10]. Certamente, essa variação poderia levar a uma caracterização errônea da estabilidade de uma estrutura. 

figura 1FIGURA 1. Variação do F.S. devido a variação de Nkt e σv0 (Adaptado de [1]).

Uma forma comum de determinar o Nkt, é a utilização de ensaios de palheta e calibração da Equação 1 com os dados do CPTu. O ensaio de palheta é um ensaio de campo cujo objetivo é a determinação da resistência ao cisalhamento não drenada de depósitos de argilas saturadas ou com elevado grau de saturação [6]. Normatizado pela NBR 10.905 [11], o ensaio consiste na rotação de um conjunto de palhetas cruciformes, cravadas em profundidades pré-definidas, podendo ser realizado com a palheta cravada diretamente no solo (Ensaio tipo A) ou com perfuração prévia (Ensaio Tipo B). Segundo a Norma Brasileira, a palheta deve rotacionar com velocidade controlada de 6,0±0,6º/min de forma a não dissipar as poropressões geradas [11]. Por meio da medição do torque aplicado no solo, determina-se a resistência não drenada do material, seja ela na condição indeformada (resistência de pico) ou na condição amolgada (resistência à grandes deformações), sendo aplicada a Equação 3, sendo T o torque máximo medido e D o diâmetro da palheta [12].

equacao 3

Com o aumento da capacidade computacional e da quantidade de dados disponíveis, a aplicação de técnicas de aprendizado de máquina tem se tornado uma alternativa à utilização de formulações empíricas para determinação de parâmetros, como a resistência não drenada. Para determinação da resistência não drenada, o trabalho desenvolvido por Sivrikaya [13] utilizou o algoritmo de Redes Neurais Artificiais – RNAs (Artificial Neural Networks – ANN) utilizando como dados de entrada os Limites de Atterberg, o N-SPT do ensaio SPT, e teor de umidade para predição da resistência não drenada de um solo argiloso natural com base em ensaios triaxiais do tipo UU (não confinado com cisalhamento não drenado) [13]. As RNAs remetem ao funcionamento de neurônios biológicos, sendo inspirado no funcionamento do cérebro humano [13]. A Figura 2 exemplifica a arquitetura de uma RNAs, sendo a calibração do modelo obtida pela variação dos pesos e quantidade dos neurônios e camadas, de forma a obter o modelo que melhor descreva a variável estudada (output) [13].

Figura 2

FIGURA 2. Exemplo de aplicação de RNA a) Arquitetura do modelo; e b) Representação de um neurônio (em vermelho) em uma camada intermediária (Adaptado [13]).

Abu-Farsakh e Mojumder também aplicaram o algoritmo de RNAs para avaliação da resistência não drenada [14]. Os autores utilizaram os dados de ensaios de CPTu e os Limites de Atterberg para a predição de Su de diferentes solos naturais argilosos com base em ensaios triaxiais UU [14]. Dentre os principais resultados obtidos pelos autores, a metodologia utilizando RNAs teve desempenho superior à metodologia tradicional que utiliza o fator Nkt, como apresentado na Figura 3.

figura 3

FIGURA 3. Aplicação da RNA: a) Resultados obtidos pela RNA; e b) Resultado obtido com a aplicação do Nkt. (Adaptado de [14]).

Cabe destacar que até o momento, não foram encontradas referências de aplicação da técnica de RNAs para predição da resistência não drenada de rejeitos por meio de ensaios de campo. Mediante o exposto, o objetivo deste estudo é aplicar a técnica de redes neurais artificiais na predição da resistência não drenada de pico de um rejeito de bauxita com base nas variáveis medidas pelo cone (variáveis independentes, input da RNA) e nos dados do ensaio de palheta (variável dependente, output da RNA). Os resultados obtidos serão comparados com a resistência não drenada obtida por meio da Equação 1.

2 – METODOLOGIA

2.1 Banco de dados 

Para o desenvolvimento do estudo, foi utilizado um banco de dados com 11 (onze) pares de verticais de ensaios CPTu e ensaios de palheta associados. Os ensaios foram executados em um depósito de rejeito de bauxita classificado como um material silto-argiloso com a porcentagem de silte variando entre 60% e 80%, sendo o restante de material de granulometria argila e percentual desprezível de areia. Além disso, o rejeito apresenta uma densidade relativa dos grãos de 3,10 (Gs = 3,10).

Os ensaios de CPTu foram filtrados para considerar as mesmas profundidades dos ensaios de palheta associados. Os dados foram tratados sendo os outliers multivariados removidos [15]. Sequencialmente, a técnica de Bartllet [16] foi aplicada para verificar a aplicabilidade de técnicas de análise multivariada de dados inteligência artificial.

Dessa forma, em linhas gerais, para a elaboração das RNAs, foram utilizadas como variáveis independentes àquelas medidas pelo ensaio de CPTu (qc, fs e u2) para determinar a resistência não drenada de pico obtida pelo ensaio de palheta (variável dependente).

2.2 Subsampling e Padronização  

O banco total é composto de 84 medições em profundidade, limitados aos ensaios de palheta realizados a cada metro, visto que o ensaio de CPTu forneceu medidas a cada 5cm. O banco de dados foi dividido em treino e teste. A amostra de treino foi utilizada para gerar o modelo preditor por meio de RNAs e calibrar o Nkt. A amostra de teste      foi utilizada com vistas a avaliar o desempenho do modelo e comparar com o resultado da Equação 1. Após a retirada dos outliers multivariados, foi adotada uma razão de 70% para treino (54 medições) e 30% para teste (16 medições).

Tendo em vista a diferença de magnitude da medição das variáveis de independentes (qc, fs e u2) tais valores foram padronizados utilizando a EQUAÇÃO 4.

equacao 4

2.3 Métricas de avaliação dos modelos 

Os modelos foram avaliados com base nas métricas de erro: (i) Erro Médio Absoluto (Mean Absolute Error – MAE); (ii) Erro Médio Absoluto ao Quadrado (MSE); e (iii) Coeficiente de Determinação (R²) como apresentado nas Equações 5 a 7, sendo n o número de medições, yi o valor real,   o valor médio e   o valor predito.

equacao 5, 6 e 7

2.3 Redes Neurais 

A rede neural foi construída com três camadas, sendo uma camada para a entrada dos dados, uma camada intermediária e uma camada para os dados de saída, com estrutura similar a apresentado por [13]. A determinação do número de neurônios da camada intermediária foi obtida por variações do número de neurônios objetivando minimizar o R² (Equação 5). A modelagem do algoritmo de redes neurais foi realizada em linguagem de programação Pyhton [17].

3 – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A Figura 4 apresenta os resultados em profundidade das medidas obtidas pelo ensaio de CPTu, compatibilizado com a resistência não drenada obtida por meio do ensaio de palheta. Como pode ser observado, os dados de resistência de ponta e poropressão são diretamente proporcionais a profundidade assim como a resistência não drenada.

figura 4

FIGURA 4 – Resultados dos ensaios de campo: a) Ensaio de CPTu; e b) Ensaio de palheta.

Aplicando-se o teste de Barttlet foi obtido um p-valor de 1,76×10-178 com 4 graus de liberdade (número de variáveis) e uma estatística χ2  igual a 9,48 utilizando um nível de significância de 5% (intervalo de confiança de 95%). Dessa forma, como o p-valor é menor que nível de significância adotado para o teste de hipótese (1,76×10-178 << 0,005), a técnica de redes neurais pode ser aplicada.

Sequencialmente, aplicando-se a técnica de remoção de outlier multivariado, foi obtido o banco final a ser utilizado na modelagem. Aplicando a Equação 1, no banco treino (70% do banco sem outliers multivariados), foi obtido um valor de Nkt aproximadamente igual à 11 como apresentado na Figura 6.

figura 6

FIGURA 6 – Calibração do Nkt.

Como base no processo de obtenção do modelo ótimo por meio de RNAs, foram adotados 6 neurônios para a camada intermediária. Após a calibração do modelo empírico e do modelo obtido por meio de rede neural, o banco de teste foi utilizado para a avaliação dos modelos gerados. A FIGURA 7 apresenta os boxplots dos resultados da resistência não drenada do rejeito de bauxita obtidos pela RNA, Nkt igual a 11, em comparação com os valores medidos pelo ensaio de palheta. Como pode ser observado, o modelo de RNA apresentou menor dispersão do que os valores obtidos via Nkt e obtidos pelo ensaio de palheta. 

figura 7

FIGURA 7 – Resultados obtidos: a) boxplot; e b) análise descritiva de Su.

Os modelos foram avaliados de acordo com as métricas MAE, MSE e R². Com base nos resultados apresentados na Figura 8, observa-se que o modelo de redes neurais artificiais apresentou o menor valor de MAE e MSE, indicando uma menor dispersão dos valores de resistência não drenada preditos em relação aos medidos quando comparado com os valores obtidos via Nkt. 

figura 8

FIGURA 8 – Valores de MAE, MSE obtidos na modelagem.

A figura 9 apresenta a comparação dos valores medidos pelo ensaio de palheta (eixo das ordenadas) e os valores preditos pelos modelos (eixo das abscissas), sendo possível observar que o algoritmo de redes neurais obteve um R² superior ao modelo convencional sendo 0,93 versus 0,89 respectivamente. Apesar da diferença dos materiais estudados, os resultados obtidos na Figura 9 se assemelham com o obtido por Abu-Farsakh e Mojumder [14], sendo o algoritmo de RNA com R² superior a metodologia utilizando o Nkt.

figura 9

FIGURA 9 – Comparação dos resultados obtidos nas modelagens: a) RNA; b) Nkt.

4 – CONCLUSÕES

O algoritmo de RNAs aplicado no rejeito de bauxita em estudo obteve desempenho superior a metodologia clássica baseada no fator Nkt, sendo obtidos resultados com maior acurácia (maior R²) e menor dispersão (menor MAE e MSE). Tais conclusões também foram observadas na literatura também para solos naturais no trabalho de Abu-Farsakh e Mojumder [14]. Sendo assim, a aplicação de técnicas de ciência de dados, em especial técnicas de aprendizado de máquina, podem auxiliar na criação de modelos específicos para cada material de forma acurada, sendo essa uma alternativa a utilização de modelos empíricos desenvolvidos.

5 – PALAVRAS-CHAVE

Rejeitos, redes neurais artificiais, resistência não drenada, Nkt, CPTu.  

6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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